terça-feira, dezembro 14, 2004

"Drowning the fever of her hands to sunlight"

vendes-me o sono em troca de um pouco de dedicação, que, só por ordem do acaso ou pedido do propósito, é o máximo de dedicação que consigo desferir a alguém. assim vês que tens precisamente o melhor de mim, a nata dos meus dias, enquanto tento esconder-te o pesar das noites

sobra-me tempo para te entregar e nenhum para os mortais, tenho amigos que entram por todas as minhas portas e sequer lhes concedo uma conversa, mando-lhes calorosos abraços e beijos cordiais pelo correio, a ti quero-te dentro de todos os meus livros, sendo que as histórias que conto são escritas na minha própria pele, seca, frágil, mas de forças renovadas sempre que a consegues tocar, toca-me outra vez

sinto-me desfalecer de cansaço apesar de tudo, as noites estouram-me porque não te tenho a fechar-me os olhos para que me esqueça das sombras na parede

transformo-me numa falena, sobrevoo-te, pouso em ti e todos me olham e te invejam, não consigo perceber porquê, a ingenuidade é leviana, a crueldade é sublime

apercebo-me da tua inércia, eu sei que merecia o mundo, quase me irrito

quinta-feira, dezembro 09, 2004

crónica, pois claro

“Te voy a dar una torta.”

Partirei, sem demoras nem introduções para a análise sociológica desta emblemática frase espanhola, que já marcou muitas gerações de “caudilhos”1.
Versão marxista-leninista2:
Esta é, sem dúvida, uma irrefutável prova da venda de Espanha aos interesses capitalistas norte-americanos e às pressões de mercado que levam à miséria humana e exploração do proletariado.
Versão de um convicto iberista:
Na linguagem como na economia, sempre revelaram estar um pouco mais à frente de nós. Enquanto nós andamos a ameaçar as pessoas com peras, eles oferecem tortas. Quem me dera que nunca tivesse existido 1 de Dezembro… Se calhar estaríamos agora a comer tortas e não a passar fome.
Versão de um naturista:
A dieta mediterrânea sempre se pautou por ser extremamente equilibrada. O balançar dos doces com a fruta é bem patente na cultura popular, como se pode verificar nas próprias expressões populares.
Versão histórica:
Decorria o ano de 1580 quando os espanhóis, liderados pelo seu Rei D. Filipe II (Pipo para os amigos mais íntimos) invadem o território lusitano, aproveitando a fragilidade política que então se vivia. A introdução de novas medidas culturais com vista a estabelecer uma identidade cultural capaz de unificar os novos territórios com o poder central, já na altura estabelecido em Madrid, levaria à adopção quer de expressões linguísticas quer…




Tudo isso foi abolido com a Revolução do 1 de Dezembro de 1640.

1- Referência às recentes afirmações do ainda ministro Morais Sarmento em relação às decisões políticas do nosso presidente da República. Já gora, porque não chamar Che ao Miguel Portas? É melhor não dizer isto muito alto, ou escrever a bold, não vão os próximos cartazes do BE apresentar o Che Portas a fumar um cubano no Parlamento Europeu. Já estou assustado só de imaginar a imagem. Que mente perversa a minha!
2- Bem vêem que regressei em força a esta difícil, mas valorosa, arte das notas. Nesta, cria apenas reavivar essa emblemática imagem da crente senhora que em pleno congresso do PC não hesitou em levantar o punho e gritar: Viva o Marxismo-Leninismo!

quinta-feira, dezembro 02, 2004

Poema

E no balcão do Barão
onde sempre repouso depois
de mais um dia de trabalho,
vou desenhando uma e outra vez
o teu corpo
parando sempre nos seios
que durante tantas e tantas noites
pude sentir junto ao meu peito
e em segredo lhes sussurrava
que te amava.
As minhas mãos roxas do frio
vão absorvendo a fricção dos carris
que lá fora vão chiando
e tremem, gemem como a primeira vez
em que sentiram o teu calor
numa noite agora tão distante,
sempre tão presente.
Do outro lado do balcão
atiçam-me olhares suspeitos
e precipito-me para a rua
onde todos correm aflitos
sem repararem no meu corpo distante
que se vai arrastando
naquele cais de Lisboa
de um fim de tarde.
Caído num banco vazio
vou adormecendo
enquanto desenho o teu corpo
uma e outra vez.

quarta-feira, dezembro 01, 2004

Raul Rivero

Finalmente foi liberto o jornalista e poeta Raul Rivero, condenado a 20 anos de prisão pelo regime democrático cubano, por se expressar livremente. Aqui fica o início de um dos meus poemas favoritos:

Suite de la muerte
I
Acaban de avisarme que he muerto.
Lo anunció entre líneas la prensa oficial.
Yo no esperaba morir este verano hermoso
de fin de siglo
pero los periódicos de mi país no mienten nunca
y por lo tanto es falso este latido del corazón
las pulsaciones, el aire que respiro.
Los recuerdos que tengo son, deben ser
el delirio final porque el Estado
no puede equivocarse en forma tan flagrante.
He muerto.
Yo mismo, que tengo sed y estoy triste
lo empiezo a comprender.
Y, que amo todavía y que me asombro y tengo miedo
estoy aprendiendo a morir por decreto.
Lento, obediente, con discreción, sin un solo gesto de rabia
comienzo a parecerme a mi cadáver.
Para cumplir la orden con rigor
y no turbar el regocijo de mis verdugos
apago con espíritu de contingente
los signos vitales que persisten
porque quien ha seguido como un carnero
el monoritmo de la campana
y la voz del pastor
tiene que disponerse a morir
con sólo el relumbre del cuchillo.

1996